O texto a seguir foi escrito pelo meu camarada Daniel Fagundes, do NCA – NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO ALTERNATIVA, um cara que eu admiro bastante e que manda bem em todas as áreas das artes que ele se movimenta, seja escrita, vídeo, poesia, música etc…
No texto ele ratifica algo que a gente já vem conversando a algum tempo: o fato da existência de tais jovens “revolucionários” que insistem em ficar engessados em antigas teorias, em vez de estarem atentos a muito do que acontece hoje, como nos movimentamos e como funciona a “realidade” vigente HOJE. Como somos e como sentimos AGORA.
Ele deixa bem claro que essas antigas teorias tem o seu valor e devem ser respeitadas, mas não devem ser regras absolutas para a transformação do mundo, podemos inventar novos caminhos, criar novas rotas.
O pior é que os tais patrulheiros ideológicos vivem taxando os outros quando saem das “caixinhas” que eles estão esperando… quando aparecem pessoas que eles não entendem, logo se assustam e vão contra.
São várias caixinhas: tem a caixinha da esquerda, a caixinha do PT, a caixinha da USP, a caixinha da periferia, enfim, são várias. Mas o fato é que o ser humano é muito maior que isso, se grande parte da humanidade insiste em ficar enlatado dentro de padrões pré-estabelecidos, nem todos vivem nessa sintonia, apesar de terem contradições, claro, o ser humano está sempre aprendendo, não tem jeito. O grande problema é se colocar como “manda-chuva” que sempre sabe mais que o outro, quem se põe assim não tem espaço pra aprender.
Mas enfim, o texto fala por si, leiam até o final que vale muito a pena.
CarlosCarlos – Bola & Arte
Segue:
MARX OU SEU MADRUGA???
Por Daniel Fagundes
A resposta ideal seria os 2. Mas cada qual com sua contribuição, cada qual com seus erros e acertos. Porém, se perguntássemos à qualquer pessoa advinda de alguma periferia do Brasil, é bem provável que a maioria escolhesse Seu Madruga como referencial teórico. Isso é ruim e é bom. É ruim por que reflete uma exclusão do povo a um saber histórico importante, mas por outro lado dá novas saídas e interpretações de rumos possíveis para o fim das desigualdades que não só o já surrado marxismo.
Desde que comecei a me enveredar pelos caminhos da luta popular, sempre me soou muito estranho o fato de que o socialismo marxista fosse quase um consenso como postura política dos movimentos sociais. Não pelo fato de a teoria ser errônea ou por não ter coerência com a luta a ser feita, mas simplesmente por que me parecia algo sempre externo ao que de fato o povo envolvido tinha por conteúdo teórico. Infelizmente a igreja católica ortodoxa foi historicamente o grande ponto de referência educacional para a construção do modelo de ensino nas camadas populares, modelo esse oriundo de uma deturpação do próprio pensamento cristão em prol das injustiças do capitalismo.
Além da igreja e da família, ganhamos nos últimos 30 anos um outro elemento importante na formação das pessoas de baixa renda, a TV. Que por sua vez é desde a década de 70 uma potência informacional e hoje em dia praticamente um membro da família, que almoça, janta e toma café ao lado dos cidadãos. Nesse contexto, é bem simples imaginar que Seu Madruga seja uma figura mais emblemática que Marx para a massa, afinal ele é quem sempre esteve presente nas tardes depois da escola nos lares das periferias, diferente do Marx que mofava em alguma prateleira de biblioteca.
As últimas pesquisas realizadas sobre o tempo de exposição de crianças a TV são de fato assustadoras, as brasileiras são as que mais veêm TV no mundo com uma média de quase 5 horas por dia. E caiam da cadeira, pois a média de leitura das crianças brasileiras é de um livro por ano. Agora a pergunta que não quer calar: Quem tem mais influência na educação das crianças brasileiras das camadas populares atualmente?
a) A família?
b) A igreja?
c) A televisão?
Como diria “Jack, o estripador”, vamos por partes!
Tópico a:
Pensemos no conceito de família em grande parte das periferias do Brasil: numa casa pequena, numa comunidade enorme em um espaço também pequeno, a maioria dos lares tem a mãe como principal provedora, depois é claro, da debandada da maioria dos pais que fazem seus filhos e fogem da situação. Os responsáveis da família sempre com pouquíssima instrução ou nenhuma, caso comum pelo fato de ter de abandonar a escola cedo para trabalhar. Nesses lares, para que as mães trabalhem cuidando dos filhos da classe média alta, as crianças mais velhas cuidam das mais novas, e devido a falta de locais dedicados a lazer e educação de período integral, a TV cai como uma luva. Pois é o tranqüilizante, sossega leãozinho que segura por um mínimo tempo que seja, a criança dentro do espaço minúsculo que ela chama de casa. Há uns 20 anos atrás, pelo fato de a internet não ser tão presente, eu já assistia muita TV, mas pegava boa parte do dia para as atividades de rua, futebol, pipa, pião, bolinha de gude entre outras, porém a maioria das crianças na atualidade quando saem de casa pra se divertir durante o dia, vão pra uma lan house. Tornaram-se mais raros que onça parda os jovens da bolinha de gude e do pião. E a internet sem a educação faz das lan houses uma obviedade do mal, 50% dos computadores ligados em jogos meramente desestressantes como Counter Strike, outros 45% em sites de relacionamento, dos ultimos 5%, 3 estão fazendo trabalhos de escola no melhor modelo control C/control V e apenas 2% devem de fato estar pesquisando algo. Triste né? Mas com a jornada de trabalho dos pais, como conter essa situação? As mães solteiras nem ao final de semana tem sossego, pois tem de dar conta de seus lares nesses dois dias, pois é o tempo que tem, imagina se na hora que ela decide descansar, o filho lhe pergunta: “Mãe o que é mais valia?”. Essa nem o Marx responderia, aliás o mesmo não era lá o melhor referencial de pai em sua época, já que 3 de seus 6 filhos morreram de inanição e um bastardo ele simplesmente deu a seu melhor amigo Engels para que criasse eu seu lugar. Seu Madruga aí teria muito a ensinar a ele já que sempre foi pai solteiro e ainda que na malandragem, nunca abriu mão da criação de sua filha.
Vamos para o tópico b, as igrejas.
Podemos dizer que em outros tempos já foram bem mais poderosas nas quebradas, principalmente a católica, mas seguem fortes mantendo uma velha regra na geografia social: uma igreja, um bar e uma lan house. Lógica não à toa desta forma. Igreja pra escorar as angústias da mãe (quase sempre abandonada pelo companheiro), sem perspectivas para os filhos, reprimida em seus desejos femininos, cansada. Bar para curar a insegurança do homem, que não tem coragem de assumir a vida que construiu, que não encontra força pra mudar o caminho, que só se sente poderoso na farsa do coleguismo de boteco. E lan House, como já foi dito, pra apaziguar a energia dos filhos.
As igrejas evangélicas são hoje um caso interessante, tornaram-se um micro poder fundamental no panorama social brasileiro. São moderninhas, permitem saias mais curtas, permitem rap, rock e funk do senhor, cortes de cabelo diferentes e até tv. Resignificaram seus pecados e como toda boa empresa ampliaram seu nicho de mercado. E são respeitadas, o PCC por exemplo, só permite desfiliação mediante conversão. Logo, pastores e pastores vão se multiplicando, dentro e fora dessa lógica. Barões e plebeus, anjos e demônios, juízes e réus. Pois é, existem até caras sérios nessa parada, caras que exercem sua espiritualidade de maneira pacífica e são valiosos para os corações amargurados do lugar.
Como são muitas as casas de oração e como não há restrições para se abrir uma filial, até cabeleireiros depois do expediente tornam-se igrejas e lá a oratória derrama seus verbos, sua “fé”. Mas hoje em dia quem tem fé de verdade? Nem em si mesmas as pessoas acreditam, quiçá em deuses, mesmo os mais “pop-stars” se quebram diante do status do mercado e é aí que o principal fenômeno da atualidade manifesta seu poder.
A TV, ou melhor, Deus, ou melhor, o caso de amor, ou melhor, o educador, enfim, o pai, a mãe, você!
Vixi… é ai que a coisa fede. Na pasmaceira do dia-a-dia deixamos de tomar as rédeas de nossa vida e a entregamos fácil nas mãos do pré-moldado tubo infecto televisivo, queremos sua fama, seus produtos, sua ideologia, sua vida. Lá tem tudo, não é mesmo?? Deixemos as crianças por lá então né? Gostaria de responder não, pelo amor de deus! Mas infelizmente a resposta social tem sido sim.
Educados pela Tv, praticamente 4 gerações assistiram ao seriado “Chaves” do SBT e puderam se encontrar numa realidade muito comum. No Chaves o personagem principal é uma criança abandonada (o próprio Chaves), numa vila com muitos lares desestabilizados. Dona Florinda, mãe solteira com seu filho Quico, Glória com sua “sobrinha” Paty, Seu Madruga e sua filha Chiquinha, além da solitária dona Clotilde. As crianças são vividas por personagens adultas que usam roupinhas infantis, uma bizarrice essencial quando pensamos na responsabilidade que adultiza as crianças nas periferias da América Latina. Enfim, uma ficção muito interessante, mas que também traz situações desconcertantes, com violência e injustiças sociais. Contraponto incompatível ao fenômeno das novelas da época que traziam a vida invejável das elites e seus conflitos idiotas.
Marx do seu ponto de vista também estabeleceu a crítica à burguesia e foi extraordinário ao revelar a estrutura do capitalismo e sua lógica de exploração. Mas ao meu ver, seu grande erro é entender o conflito como via primordial da existência humana, quando resumiu a humanidade à luta de classes, quando pensou na ditadura do proletariado. Pra mim uma teoria vingativa, que não nos levará ao empate do jogo de classes e sim a eterna guerra entre oprimidos e opressores. Eu acredito na célebre frase do velho Madruga que diz que “a vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena”. Pra mim o contexto só mudará quando nos tornarmos mais amáveis, mais respeitosos. E é bom lembrar: amor não é só perdão, quem ama cuida e quem cuida critica, briga, desata, reata, constrói. O que os durões socialistas que almejam pegar em armas não pensam é que matar é matar, independente do lado que você esteja. Acredito na via que responsabiliza à todos pelo problema atual, não sou melhor porque nasci em periferia, não sou melhor por que tenho uma história triste pra contar, nem são melhores ou piores os que nasceram em berço de ouro. Sei que os escravocratas foram e são um desastre do ponto de vista humano, mas sei que também foram desastrados os que se deixaram escravizar. Somos mais que essa eterna guerra, precisamos resolver nossas contradições internas. Pois assim como Marx não foi marxista, Ramón Valdés não foi Seu Madruga em sua vida pessoal. Precisamos aprender a ver um humano imperfeito e maravilhoso em cada pessoa que atravessa nossa vida. E viver pra construir a nova história deixando a velha história no lugar dela. Pois o futuro precisa de bases, mas não é construido por quem já morreu.
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